Publicado em: Outubro/2013
por Eduardo Vasconcellos
Há um assunto que preocupou muito os cristãos da Igreja Primitiva e que tem se tornado recorrente nos últimos tempos para a igreja contemporânea: os cristãos devem guardar o sábado ou domingo? Guardar o domingo tem o mesmo significado que guardar o sábado? “É lícito nos sábados fazer bem, ou fazer mal? salvar a vida, ou matar?” [Lc 6: 9]
Não há dúvidas que para os judeus a ordenança de guardar o sábado era uma exigência que, entre outras coisas, servia como sinal da aliança entre Deus e o seu povo. “Tu, pois, fala aos filhos de Israel, dizendo: Certamente guardareis meus sábados; porquanto isso é um sinal entre mim e vós nas vossas gerações; para que saibais que eu sou o SENHOR, que vos santifica. Portanto guardareis o sábado, porque santo é para vós; aquele que o profanar certamente morrerá; porque qualquer que nele fizer alguma obra, aquela alma será eliminada do meio do seu povo.” [Êxodo 31: 13-14] O v. 17 dessa mesma passagem inclui ainda outra razão para guardar o sábado como um sinal de descanso. “Entre mim e os filhos de Israel será um sinal para sempre; porque em seis dias fez o SENHOR os céus e a terra, e ao sétimo dia descansou, e restaurou-se.” [Êxodo 31: 17]
Segundo R. de Vaux, “este repouso de Deus após a criação não é um antropomorfismo, é a expressão de uma idéia teológica: a criação é o primeiro ato da história da salvação; quando ela é completada, Deus pára e pode concluir uma aliança com sua criatura, da mesma forma que a cessação do dilúvio fez possível a aliança com Noé, da qual o arco no céu é o sinal (Gn 9:8-17). O ‘sinal’ da aliança da criação é o sabá observado pelo homem, cf Ez 20:12-20, à imagem do primeiro sábado do mundo, no qual Deus repousou”.
O autor citado associa o sábado da criação à salvação do homem, idéia também presente na carta aos Hebreus, quando seu escritor menciona o repouso como o descanso final obtido após “reter o princípio da nossa confiança até o fim”. De acordo com esse texto, o descanso prometido ao povo israelita no deserto não foi alcançado com Josué pela desobediência de muitos e porque “resta ainda que alguns entrem nele”, pelo que ele exorta a “entrar naquele repouso, para que ninguém caia no mesmo exemplo de desobediência”. Esse texto deixa transparecer a idéia de que o dia de sábado representa o dia da salvação, quando finalmente o crente salvo encontrará repouso de sua jornada de “seis dias” na terra.
Encontramos essa associação de sábado-salvação na Epístola de Barnabé, pai apostólico, de uma maneira mais explícita. “Prestai atenção, filhos, sobre o que significa: ‘terminou no sétimo dia’. Isso significa que o Senhor consumará o universo em seis mil anos, pois um dia para ele significa mil anos. Ele próprio o atesta, dizendo: ‘Eis que um dia do Senhor será como mil anos’. Portanto, filhos, em ‘seis dias’, que são seis mil anos, o universo será consumado. ‘E ele descansou no sétimo dia’. Isso quer dizer que seu Filho, quando vier para pôr fim ao tempo do Iníquo, para julgar os ímpios e mudar o sol, a lua e as estrelas, então ele, de fato, repousará no sétimo dia”.
Cremos que, de certo modo, Jesus também deixou essa ideia de um período de seis (dias/anos/geração) antecedendo à chegada ou a conclusão de um evento como um todo perfeito e acabado no sétimo (dia/ano/geração). Nos evangelhos sinóticos dificilmente encontraremos menção específica dos dias que se passavam entre um episódio e outro relatado pelos evangelistas. Há concordância inclusive de que o primeiro evangelho escrito foi o de Marcos, e que a ordem dos eventos nem sempre era cronológica. No entanto, quando Marcos relata a conhecida passagem da transfiguração de Jesus, no capítulo 9 de seu evangelho, ele começa dizendo “seis dias depois” de que Jesus mencionara a chegada do Reino de Deus com poder, tomou consigo a Pedro, a Tiago e a João. O desenlace da passagem se dá num alto monte onde Jesus transfigura-se, e desce uma nuvem do céu, da qual sai uma voz que testemunha do Filho de Deus. Era uma ocasião solene, pois foi a primeira vez que Jesus mencionou a ressurreição dos mortos, e seus discípulos não compreenderam. Em síntese, Jesus anuncia a chegada do Reino de Deus com poder, após esse anúncio passam-se seis dias e, no sétimo dia, fala pela primeira vez sobre ressurreição aos apóstolos. Por essa sequência de acontecimentos, acreditamos que Jesus queria deixar subentendida esta ideia da chegada do reino de Deus após seis dias, quando ocorrerá, finalmente, a ressurreição dos seus para viverem com Ele.
A transfiguração após seis dias, portanto, apontaria para o mistério da ressurreição no sétimo dia, no derradeiro sábado, conforme revelado por Jesus aos seus discípulos. Isto estaria de acordo com a sua conduta em relação ao sábado mostrando que Ele é Senhor do sábado. Quando questionado pelos judeus sobre a colheita realizada pelos seus discípulos para se alimentar, Jesus simplesmente afirmou que os sacerdotes também violavam o sábado quando sacrificavam os animais e permaneciam sem culpa. Citou também o episódio em que Davi, por necessidade de fome, entrou na casa de Deus no tempo do sacerdote Abiatar e “comeu dos pães da proposição, dos quais não era lícito comer senão aos sacerdotes”. Além disso, Jesus curou no sábado e perguntava aos escribas e aos fariseus: “É licito no sábado fazer bem ou fazer mal? Salvar a vida ou matar”? Essa pergunta remete ao propósito do sábado e enfatiza aquilo que Jesus queria transmitir: o sábado foi feito por causa do homem e não o contrário, portanto, no sábado o homem encontra o repouso, o alimento, a cura e, finalmente, a salvação.
Vimos até agora como a idéia de guardar o sábado contém vários aspectos significativos que nos ajudam a perceber a essência desse mandamento. Contudo, para sua prática, devemos nos fixar somente naquilo que se tornou exercício de fé dos primeiros cristãos e que, passados os primeiros anos, constituiu-se como Tradição Cristã. No início, os apóstolos usaram como estratégia de pregação do evangelho a freqüência às sinagogas (“mas ide antes às ovelhas perdidas da casa de Israel” Mateus 10: 6), e para isso, se reuniam aos sábados com os judeus, conforme o texto de Atos 13:13-14, “E, partindo de Pafos, Paulo e os que estavam com ele chegaram a Perge, da Panfília. Mas João, apartando-se deles, voltou para Jerusalém. E eles, saindo de Perge, chegaram a Antioquia, da Pisídia, e, entrando na sinagoga, num dia de sábado, assentaram-se”.
Mas a reunião dos cristãos, o partir do pão e o culto propriamente dito ficou reservado para o dia do Senhor, o domingo, por causa da ressurreição e da primeira aparição de Jesus aos discípulos. Era, assim, o primeiro dia, conforme podemos ler em várias referências: “Chegada, pois, a tarde daquele dia, o primeiro da semana, e cerradas as portas onde os discípulos, com medo dos judeus, se tinham ajuntado, chegou Jesus, e pôs-se no meio, e disse-lhes: Paz seja convosco.” [João 20:19] “E no primeiro dia da semana, ajuntando-se os discípulos para partir o pão, Paulo, que havia de partir no dia seguinte, falava com eles; e prolongou a prática até à meia-noite.” [Atos 20: 7] “No primeiro dia da semana cada um de vós ponha de parte o que puder ajuntar, conforme a sua prosperidade, para que não se façam as coletas quando eu chegar.” [1 Coríntios 16:2] Sabemos que o domingo passou a ser considerado como dia do Senhor pelas palavras do apóstolo João, no começo do livro de Apocalipse, “Eu fui arrebatado no Espírito no dia do Senhor, e ouvi detrás de mim uma grande voz, como de trombeta,” [Apocalipse 1:10]
Inácio de Antioquia, ainda no Século I, escreveu o seguinte sobre este assunto na sua Carta aos Magnésios: “Os profetas eram Seus servos e O previram pelo Espírito, e O esperaram como Instrutor e também como Senhor e Salvador, dizendo: ‘Ele virá e nos salvará’. Portanto, não precisamos mais manter o sábado, como fazem os judeus, ou alegrar-se pelos dias de ociosidade, pois ‘aquele que não trabalha, não deve comer’. […] Mas deixe todo aquele entre vós que ainda mantém o sábado por motivo espiritual, alegrando-se na meditação da Lei e não no descanso do corpo, admirando a obra de Deus e não comendo coisas preparadas no dia anterior, não fazendo uso de bebidas mornas ou andando um certo limite prescrito, não deleitando-se por dançar e aplaudir, e outras coisas sem sentido. Porém, após a observância do sábado, deve todo amigo de Cristo observar o Dia do Senhor como festa, o dia da ressurreição. […] [Foi nesse dia] que a nossa vida renasceu e a vitória sobre a morte foi obtida em Cristo.”
Por estas palavras fica evidente a razão da Igreja de Cristo guardar o domingo como dia de descanso e não o sábado, de modo que prevalece o princípio bíblico de descanso somado à festa pela ressurreição, e não tem outro significado senão o anúncio da nossa própria ressurreição quando finalmente entrarmos para o descanso eterno junto com o Senhor. Aleluia! Glórias ao Senhor, nosso Deus, Deus de mistérios e de milagres.