Publicado em: Março/2008

por Rene Pereira Melo Vasconcellos


Naquele fim de domingo senti morrer em mim a romântica recordação das feiras de interior, das bancas que fervilhavam cheiros; transbordavam prosperidade nas sacas de cereais com as bocas abertas, generosamente francas, desafiando a fome geral; ouvi silenciar, no mais recôndito do meu íntimo, o vozear dissonante da feira cujo clamor, me fez perceber, por primeira vez, a tremenda harmonia que habita nas dissonâncias de que fala o notável Unamuno. 

No instante em que cruzei a linha férrea as cores vibrantes que animavam as recordações da infância se fizeram noite; eis que, de súbito, descortinou-se diante de mim um cenário tosco e a feira daqueles dias deu lugar a um ambiente fantasmagórico, – contudo real – e uma presença esmagadoramente opressiva imperava nos espaços deslocando as estruturas gerando incertezas. 

O local em que me situava, agora, estava completamente penetrado e moldado por influências sociais bem distantes dele; sua constituição não se limitava ao grau de visibilidade presente na cena – a forma visível daquele lugar ocultava relações mundanizadas, complexas e distanciadas, contudo eram essas relações que dava o tom gris e prevaleciam naquele cenário rústico, apinhado de bancas rudimentares que disputavam um canto com a pista destinada ao tráfego, indiferente, dos carros. 

Foi num lapso que o nefasto poder apropriou-se do local, as forças globais entremetendo-se nas locais pesaram no ambiente, cindindo o tempo e o espaço; traçando contornos mundanizados no velho mercado público, delimitando – num recorte – a área de ação onde os protagonistas, daquele cenário de dores, já tomavam posição para a realização do infame ato. Essa força insidiosa, frente a qual nenhuma instituição, sistema, nem mesmo o estado tem podido, melhor dito, – tem querido – impor limites, e ou, regular seus desmandos; esse ente que ninguém vê, imaterial, aterritorial, já insinuava sua influência, sua presença já se fazia notar… 

Era ele, o próprio espírito do mundo do qual falou Hegel; ele espreitava e oh… Lástimas das lástimas eu podia pressentir sua presença medonha preenchendo todas as brechas numa velocidade vertiginosa. Cruzei a linha férrea que separa o Centro das margens e eis que de pronto, fez-se noite, fez-se frio glacial, em tal escala, que qualquer bicho – por desventura – que por ali errasse, aguçaria todos os sentidos e farejaria a monstruosa força cujo cheiro acre exalava crueldade. 

Alerta, o bicho correria, correria em desabalada carreira para longe da bestial influência que dirige a Sociedade do Espetáculo… Inquieto, nervoso e insone, portador de um estilo camaleônico, que lhe permite operar em várias dimensões, qual seja, no lugar e no não-lugar cujo poder e influência cresce na medida de sua capacidade de escamotear-se, ele estava ali por inteiro, sem subterfúgios, sem preocupar-se em manter as aparências e ocultar seus interesses, – estava integralmente ali: o deus-mercado [1]!!! 

Não como imagem ou símbolo veiculado pela mídia, como daquela vez em que a cidade ficou coalhada de outdoors que traziam o próprio Hermes ou seria Mercúrio? representado no outdoor com seu chapéu e sapatos alados portando, claro, sua grande bolsa, anunciando que os melhores do comércio de Maceió receberiam a estatueta dourada de Mercúrio – considerado pelos romanos como protetor dos ladrões – era um reconhecimento daquela entidade comercial pelo desempenho dos seus associados naquele ano, mas levar para casa a estatueta do deus só para os melhores do ramo.

Editora Sal Cultural - Coleção Grandes Temas da Teologia

 Não é a essa disseminação da imagem de Hermes por toda Maceió – outdoors e estatuetas – que aludo agora. Não, trato aqui ao contrário, menos que a imagem e a cópia sobejamente distribuídas na cidade naquela ocasião, refiro-me antes a estarrecedora constatação de que nossos universos estão sob o senhorio de um conjunto complexo de forças articuladas e em íntima relação; essa poderosa articulação de forças, contudo têm passado desapercebidas pela maioria, e quando são vagamente notadas, essas percepções são acompanhadas de parcialidade e imprecisão. 

Mas a crueza daquela circunstância não deixava pairar dúvidas; naquele instante pude entender com exatidão o que querem dizer os neoliberais com o “caráter transcendental” do merca-deus e o tanto da “dor do outro” que este discurso oculta, quando, placidamente, anuncia os “sacrifícios necessários” exigidos pelas leis do mercado em nome da eficiência e do progresso. 

Quando as coisas são colocadas nesses termos um holocausto passa a ser considerado do ponto de vista estratégico, uma deportação em massa uma questão de economia e a violência contra o indivíduo simples acertos de contas – absolutamente tudo, é embrulhado na nebulosa do relativismo. 

Generalidades, carentes de significados, sem sombra de dúvida; tanta generalidade nega o vivido porque não transmite absolutamente nada das subjetividades em questão, e como se sabe a subjetividade é a verdade! Logo… Foi um choque constatar in locu que o neoliberalismo é a ideologia hegemônica da atualidade, que o seu deus, o mercado, é o príncipe desse século e estava ali, ligando vastos mecanismos impessoais a existência de pessoas pobres e obscuras, meros fantoches econômicos ou seriam culturais? 

Mas, o que faria Hermes, o veloz mensageiro dos gregos, ou o seu correspondente romano Mercúrio, deus protetor do comércio e dos lucros, naquele cantinho de minigâncias, típico do nosso pobre mercado público? Que faria o deus do comércio longe dos altos circuitos do mercado mundial, ali, num lugar onde perambulam as hordas e os desfavorecidos sociais? Desentendera-se da agenda da OMC (Organização Mundial do Comércio), em cujos palácios (Associações Comerciais), espalhados pelo mundo, têm os templos de adoração dedicados à si? O que o levara a distrair-se do seu papel de vigilante do comércio planetário, primeiro mandamento, que confiara ao zelo mercantil da OMC? 

Quase me esquecia que Hermes, o espertalhão, transita com desenvoltura e rapidez nas várias dimensões – ocupando-se dos interesses gerais do mundo, no céu, na terra e nos infernos. Theatrum mundo. O recorte de mundo em que me encontrava está encravado num feixe de ruas, num entroncamento que desemboca na rua 16 de setembro. Era para a rua que fala da Independência de Alagoas que eu me dirigia naquela tardezinha de domingo. De dentro do automóvel tudo parecia calmo (violance du calme?) até que ao longe divisei alguns vultos que se movimentavam em direção a pista, diminui a velocidade a fim de dar uma distância segura aos pedestres. 

Paralelo às bancas que margeavam a estreita pista seguia um senhor que apressava os passos no seu caminho, após ele vinha outro homem que avançava contra os limites da pista a cada vez que olhava para trás perdendo assim seu norte. Diminui a marcha e não sem um desconforto imediato vi uma menina saindo das entranhas escuras daquele emaranhado de bancas, carregando uma mochila surrada nas costas e ares de cheira-cola, seus quinze anos já não cabiam na mini-saia de nove que usava; quando ia atravessar o que restou da via estava visivelmente despistada, imagino que como se descortinou o mercado para mim se descortinou a pista para ela: de súbito! 

Naquele instante a luz do dia já havia fugido e o cenário era de turbulências. O velho com aspecto de alcoólatra olhava a menina com um sorriso sujo e ela totalmente desavisada – andava como se estivesse sozinha no mundo. Os modos do velho já provocavam em mim uma repulsa indizível, mas o que sucedeu na seqüência tem o nome de barbárie. Vindo após ela, quatro tipos jovens, relativamente bem trajados – desviaram-se do automóvel sem, contudo tirar os olhos de sua presa; saídos do fundo da noite surpreenderam até o velho que não entendia o que vinha a ser aqueles acenos que o que parecia ser o líder do grupo realizava, gesticulando com as mãos fazia referência a menina e a um beco escuro formado por uma viela de bancas. 

Com um gesto impaciente e outro obsceno o que vinha atrás gritou, – entre os dentes – o que o outro que gesticulava queria transmitir com sua mímica torpe: empurra, empurra!!! Vendo surpreendida e frustrada sua malícia, pelos invasores, o velho não conseguiu esboçar a mais mínima reação; antecipando-se, o que ia adiante do bando empurrou, com rapidez, a menina no estreito escuro e todos desapareceram naquele fosso imundo. Aquela altura o mercado público de Maceió virou Vicus Tuscus, o antigo e dissoluto bairro etrusco de Roma no mesmo instante em que eu, melhor dito, o meu carro, atingiu a rua 16 de setembro, nome em homenagem a independência de Alagoas. 

Constatando nessa passagem que o mundo contemporâneo se compõe – ou se decompõe? – de uma pluralidade de espaços e temporalidades heterogêneos justapostos e divorciados. Já não havia dúvidas. O deus-mercado viera buscar os tão propalados “sacrifícios necessários” que proclamam os profetas neoliberais no alto das tribunas e na Academia; viera requerer o sacrifício no altar que a eficiência da “mão invisível” erigiu naquele deserto urbano em questão de segundos! 

Os que conhecem a versatilidade de Hermes sabem que ele não se ocupa apenas de reuniões de cúpula, negócios e de como obter fortuna, a ele lhe encanta a trapaça, o roubo, a iniqüidade e a mentira. Não foi a ele que foi dada a incumbência de excluir a ninfa Lara e levá-la para as trevas exteriores? Não foi o próprio Hermes que a violou sem pejo, quando chegaram nas baixezas dos caminhos escabrosos onde mora a impunidade? Não é ele sabedor que a geografia, por onde vagueia o excluído, é acintosamente ignorada por todos e, sobretudo, que o horror disseminado nos corpos é implacavelmente silenciado? Não é esse, aquele, cujo maior atributo é o engano e com ele, o espírito do engano, se garante que, em nome do “progresso e da paz geral” as violências cometidas contra os que já não são mais necessários, ou seja, os desnecessários, – taxados pelo mercado de incompetentes – serão permitidas e até incentivadas? 

Sim… Violências que são permitidas em função de um bem maior que se espera alcançar no futuro da pós-modernidade, ou seja, um futuro que é sempre presente e nunca se esgota. É dessa sutileza de sofista que o mercado lança mão para exercer o direito a violência e fazer valer suas leis, – as leis do mercado – com o aval e a condescendência da quase totalidade da sociedade – enlanguescida diante das promessas neoliberais de um “paraíso artificial” que o progresso e as tecnologias promoverão para todos.

 Diante de tanta astúcia, não me estranha que a eloqüente retórica e a arte do bem falar sejam atributos marcantes desse ente cuja lábia o tornou patrono dos advogados; mas me espanta, infinitamente, que se diga por aí, que foi Hermes, o deus-mercado, quem multiplicou e fortaleceu as relações sociais, fortaleceu??? . Como isso é possível, ainda não atinei, haja vista que a violência é o substrato das relações que o mercado estabelece, traduzindo-se na máxima da “concorrência de todos contra todos”. 

Competindo, excluindo, silenciando é assim que, a rigor, se estabelecem as relações de mercado, mas quem sabe não é precisamente esse aspecto, ou seja, a estratégia de tornar invisível a violência contra o excluído empurrando-o para as trevas exteriores de modo que perca a visibilidade, a voz, e a honra ou no outro sentido bombardear a sociedade de imagens violentas através dos meios de comunicação até que, pelo excesso, já ninguém veja mais nada, sequer se aperceba de um só ato vil e todos comemoremos em transe, o êxtase da comunicação sem nenhum halo de proteção privada, nem mesmo seu próprio corpo. Silenciar, difamando, e sujeitando a violência aqueles que ele exclui é uma atribuição que o deus desse século executa com um orgulho indisfarçável. 

A lógica do mercado gira em torno da eficiência e do lucro, logo a automação foi muito bem vinda e bem quista por todos, contudo nós não contávamos que tanto conforto na vida privada fomentasse o descarte de vidas humanas como hoje se vê – os excluídos do mercado tornaram-se descartados sociais. Rotulados como mercadoria vencida, foram taxados de incompetentes, logicamente desnecessários e em nome do progresso, merecidamente excluídos. 

E… Na condição de desnecessários passíveis de sofrer qualquer tipo de violência até mesmo, esconjuro, a eliminação. Lara confirmaria minhas palavras sobre esse tema, respaldaria, se pudesse; sim… aquela Lara, taxada por Hermes de “charlatona” – por ter tido a coragem de denunciar suas fraudes, se pudesse faria suas as minhas palavras. A pobre Lara, sem nenhuma proteção se opôs ao deus e por isso foi severamente castigada com a exclusão social e a violência que se seguiu irrompeu do encontro da oportunidade com a impotência. O próprio Hermes se encarregou de conduzi-la para as sombras exteriores, para a terra do seu desterro, onde o silêncio é filho do medo. Próximo do seu destino, afastados do caminho, na altura das veredas torcidas, Hermes arrancou a língua da menina e a violentou ao abrigo da impunidade e ao som das flautas de Pã[2]. 

Mas pasmem, nessa atroz jornada o deus-mercado cumpria uma missão: levar a termo o processo de exclusão social daquela criatura em nome da paz e do progresso. Lara confirmaria tudo, se pudesse…. Se tivesse voz! Em circunstâncias de pós-modernidade o deus-mercado não se dá ao trabalho de levar suas vítimas à lugares ermos: os tempos e espaços são justapostos e de mais a mais, o individualismo, a indiferença e a ganância trabalham em conjunto para isolar as fronteiras e relativizar as violências possíveis. 

Tudo ocorreu em questão de segundos, e o impressionante da história é que nenhum deles se deu conta da minha presença, só consideraram que um veículo passava por ali, – acostumados que estão a agir em meio a uma urbanidade indiferente; pessoas apressadas, dentro de seus automóveis, envolvidas com seus próprios negócios, indiferentes aos outros mundos sofridos e contíguos. 

Nesse deserto que se chama humanidade o desespero e a impotência eram as agonias que calaram o grito na minha garganta, tomada de angústia e perplexidade num átimo me vi na rua 16 de setembro e constatei em dores o quanto Alagoas está longe da Independência que propaga suas autoridades e os nomes de suas ruas. Enquanto seus filhos e filhas, as criaturas de vida obscura, forem assoladas nos trilhos urbanus somos obrigados a admitir que a ética e a justiça acionadas até o presente não atingiram o escopo pretendido. 

No lugar da justiça há impiedade e no lugar da independência ainda mais impiedade. Um ou outro mais atrevido pode falar em liberdade em circunstâncias de pós-modernidade, mas não sem um pigarro constrangido. Como os pais da antiguidade utilizavam a trombeta, toquei a buzina sem parar e disparei procurando a luz e no primeiro lugar que vi luzes parei o carro, corri procurando ajuda, para mim, para a menina, para o futuro. Atropelando as palavras, dando livre curso à minha perplexidade e necessidade de justiça contei a um jovem o sucedido tenebroso. Ele calmamente me exortou à calma e tanta frieza eu atribui à sua imaturidade emocional e espiritual; que desilusão a minha, procurava a luz e encontrei as luzes que acenderam tanto a ponto de deslumbrar cegando. Se eu estava lá, como testemunha ocular do ato medonho como poderia omitir-me?

 Desviei-me rapidamente para outro e falei conforme o sucedido, na esperança de encontrar ajuda e consolo entre os anciãos, mais a anciã de anos me tornou a responder em conformidade às primeiras palavras do jovem. Essa é a lição mais pérfida que os teólogos da mundialização lograram incluir no seu ideário, qual seja, o relativismo insidioso que revela a metástase e cujos focos eclodem em vários pontos do tecido social comprometendo e fragmentando o discurso político, ético e o religioso. 

O espírito que impera no presente século, se engrandeceu, quase sem resistência, penetrando profundamente nas entranhas da economia e da política, mas foi no social que ele cravou profundamente suas garras. Sem a proteção do Estado, sem as garantias conquistadas no decorrer dos séculos e sem, praticamente, nenhuma resistência teórica, pois os membros da Academia oscilam entre atônitos e ou indiferentes, seja por ignorância, ou pior, por indiferença, mas o fato é que a distração é generalizada – o mundo mergulha numa crise cultural sem precedentes porque não vislumbra saída em nenhuma grande narrativa, o fosso das vítimas sacrificadas em holocaustos ao deus-mercado se alarga e aprofunda e a decomposição do corpo social ameaça, inclusive, a vida dos bem-integrados do mercado; os intelectuais, governantes e religiosos dizem: há paz! Há paz! Quando não há paz. 

Contudo, nem tudo está perdido, a esperança continua dentro da caixa, e num sentido Bauman a devolve ao indivíduo para quem “a plenitude de opção moral e de responsabilidade” se descortina agora de modo especial e significativo. Para amarrar usando as linhas de Soren Kierkegaard, digamos, que a salvação está no indivíduo – a categoria por excelência.


René Pereira Melo Vasconcellos é psicóloga, doutora em Sociologia e Ciências Políticas pela Universidad Pontifícia de Salamanca, Espanha


[1] Hermes é o deus-mercado para os gregos e Mercúrio seu correspondente romano; as palavras comércio, mercado e mercenário derivam do latim merx (mercadoria).
[2] Pã, divindade pastoril, filho de Hermes; é tido, também, como símbolo da obscuridade porque causa nos homens os terrores pânicos, isto é, sem motivo. É reconhecido, igualmente, como deus dos caçadores – quando ia à caça, mais do que os animais ferozes era o terror das ninfas, a quem perseguia com os seus ardores amorosos. Está sempre atrás de emboscadas, atrás dos rochedos e das moitas, é o deus do pânico.

 

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