Publicado em: Abril/2006

por Rene Pereira Melo Vasconcellos


Querido Leitor :
Confessava-me um médico: “…o feriado que mais movimenta o Pronto Socorro é o da Páscoa, chegando a bater o carnaval, haja vista o número de ocorrências…” Caramba, pensei comigo mesma, uma Páscoa que bate no carnaval, é o tipo da estatística surreal, tamanho o grau de desprezo a qualquer indício reflexivo na mensagem, ou como vai concordar quem se espante ao mesmo tempo em que eu: essa é uma construção carente de sentido, transbordante do mais irrestrito irracional. A Páscoa mais violenta que o carnaval, eis aí o tipo de constatação que me deixa em suspenso, não sei se rio ou choro infinitamente… Sim… Porque o contraste entre os dois tipos de festividade é tal, que alcança as dimensões da eternidade; somando a eternidade passada com a futura, aí teremos o abismo que separa as duas festas. Meu espanto é legítimo na medida em que o Carnaval pertence e está total, e irremediavelmente, desde o sábado até as cinzas, incluído nas categorias do estético. É Estética, precisamente estética, o que tratamos aqui!

Para entender esse tipo de posicionamento, esbarro, inevitavelmente, na ilusão. Qual ilusão? A Páscoa só poderá superar os resultados usuais do carnaval se estiver sendo comemorada a caráter, e para tanto não precisa ser nenhum mestre-sala para saber que, estar conformado ao estilo implica em portar a bandeira da multidão, lançar-se na folia, e isso de corpo e alma. De corpo e alma? Multidão?? Como??? Naturalmente… Com toda naturalidade a coisa se passa, vejamos: metida numa sisuda fantasia de Páscoa mas, celebrada como carnaval, e se alguém lhe pergunta, quem é você? Se declara Páscoa – confessa, mesmo vivendo um interno, digo, eterno festival e quem vai lhe contradizer se está vestida, perdão, fantasiada de Páscoa? Vertigens me assaltam, mas, a Verdade tal qual a águia, zelosa de seus filhotes, me alcança e me faz repousar em suas asas, só até o próximo salto. Atravessando os séculos, porque é mais poderosa que a aparência do tempo, a Verdade vem em meu socorro, nas palavras do Irmão Kierkegaard – e me cinge, a fim de que eu não venha sucumbir no vazio da imediatez que compromete o Instante de Eternidade. “… a maioria que apenas conhece na sua vida os momentos da síntese do corpo e da alma, nunca chegam à determinação do que é o espírito”. Com essa palavra desvendei o enigma, se a Páscoa é uma festa religiosa, logo, localizada nos domínios do religioso e está sendo comemorada com os rigores do estético, não é Páscoa que se comemora e sim um festival qualquer. Resulta de tudo isso que, em não sendo Páscoa, não há o Salto, possível apenas na presença da Fé, se não há o Salto não ocorre libertação, tampouco renovação. E o que ocorre? Ocorre, quando muito, quando muito…. pulos, pulos de um lado para outro e não raro, piruetas… 

Nesse movimento, entre uma cabriola e outra, a Mentira se instala comodamente assim um crê, que vive a Páscoa, quando na verdade a apressada criatura se ilude a si mesma nos movimentos negligentes que executa!!! Ora vamos, de todos os modos, qualquer tentativa de tentar explicar a Páscoa, uma festa religiosa por excelência, utilizando as categorias do estético que são de todo diferentes das categorias cristãs ou procurar explicar, o cristianismo, sob qualquer prisma, do ponto de vista da estética, é querer conduzir o cristianismo em direção ao paganismo. Mas vá lá eu bulir nisso?! Tarefa titânica, própria para teólogos, exercitados com perícia na arte de repudiar toda carnalidade – que é imediata e essencialmente estética; repúdio esse, que se dá em privilégio das coisas do espírito! Agora seja!!! Eu?! Não!!! Necessário seria toda uma confraria de filósofos metafísicos e teólogos juramentados para combater tão assombroso combate em prol da causa do espírito. Ademais, nunca se sabe, a informação é tão impessoal, depois de publicado, o textozinho já não está sob os meus cuidados, tão humildezinho peregrina pelo mundo, onde vai parar? Não sei…

Sempre há a possibilidade de uma criatura curiosa, passando uma vista d’olhos nas palavras, quem sabe, a cata de informações astrológicas, ou contaminada pelos mirabolantes misticismos das novelas globais vir a equivocar-se ao consumir algo na presente consistência. Portanto, rápido, mudemos a perspectiva, mas, nunca, nunca a Idéia-Alvo!… Que tal, algo, assim… Mais palatável, digerível até mesmo por um organismo singelo?… Leite, sim… falemos de leite, o leite é alimento próprio para evitar dano ao organismo infantil, suscetível e impressionável por natureza; mesmo uma estrutura dotada de tal simplicidade, o tomaria, sem prejuízo a saúde. Está decidido! Falemos de leite! Será? Ou ainda assim seria difícil tomar tal cálice? Hummm… Devemos agregar-lhe sabor? Talvez, afinal vivemos um tempo da hiper-sensibilidade do real, submersos em circunstâncias de pós-modernidade. Submersos, pois a cada ano o mercado lança novidades inimagináveis nas prateleiras, novos produtos, dos mais variados sabores, cores e formas com detalhes cada vez mais elaborados. No vale tudo para ser uma empresa competitiva, vale de tudo! A luta para agradar o cliente-rei inclui também os consumidores infantis, filão importantíssimo de um mercado atento e zeloso na preservação, manutenção e fortalecimento das tradições e das culturas, desde que evidentemente, tudo possa ser englobado numa única cultura, qual seja, a Cultura de Consumo.

Está decidido!!! Falemos de crianças, leite e Páscoa na perspectiva do mercado. Ai… Ai… Prá onde eu fui agora? Páscoa? Na perspectiva do mercado? Estou trêmula! Vejamos se consigo me fazer entender: viventes e co-participantes da Sociedade de Consumo, as crianças do presente século já entenderam, já entenderam desde o século passado que o produto tem um valor, o que as leva, coitadinhas, a confundir o seu valor pessoal em função da quantidade de coisas que possui. Se for uma criancinha de classe média o quadro se agrava, e a atrapalhação assume proporções tragicômicas. Mas, enfim, a lição que aprenderam e se dispõem a levar à tumba se limita ao prático e objetivo mandamento: Consumo, logo, existo. Mas, já basta de discorrer por sendas tão áridas próprias para tratados e ou compêndios que não cabem aqui… Falemos de Páscoa! De algo palatável e doce. Se falamos de crianças, leite e Páscoa doce, melhor contar uma história.

“Na sala de Sofía aconteceu a maior confusão quando a professora resolveu comemorar a Páscoa trocando ovos de chocolate entre os coleguinhas, prática que vem se tornando comum já há alguns anos. O problema começou quando uma colega entendeu que o ovo que tinha recebido não era tão bonito e com “tantos recursos” como o que ela tinha dado; do outro lado um menino começou a chorar dizendo que sua mãe “ia matá-lo” se ele chegasse em casa com aquela “caixinha peba” de chocolate quando tinha dado um ovo que tinha um bichinho com a língua fosforescente e… arghh…. grudenta! Meu deus do céu, ou melhor por todos os deuses, gritava a menina inconsolável diante da grande injustiça de ter dado um ovo (imagine…) de número 15, enquanto pobrezinha tinha recebido um ridículo ovo número 10 de valor aquisitivo muito inferior??!!! 

Diante de tantas injustiças e reclamações porque esses pequenos consumidores sabem exigir seus direitos de consumidores a professora mandou chamar a Coordenadora pedagógica para resolver o problema do escambo que não deu certo; esta ouviu as partes envolvidas na questão, mas o choro não parava, desiludida, sem saber o que fazer, mandou chamar a Coordenadora da Disciplina que trouxe dois reforços: os bedéis que dão uma força como segurança quando necessário. A tropa de choque na sala não foi suficiente para reprimir o choro que crescia a cada soluço do coleguinha ao lado. Rapidamente alguém teve a brilhante idéia de convocar em caráter de urgência a psicóloga, pois aquilo parecia ter saído da alçada da “polícia” e passava a ser uma questão para especialista, trata-se de histeria coletiva, palpitava outro…logo, assunto para especialista: coelhinhos nervosos exigem os melhores produtos do mercado como aqueles da televisão ou outros iguaizinhos aos que estão expostos na vitrine das boas casas do ramo. Chegado o reforço capaz de resolver aquela louuuucura todos pararam um pouco mas só o suficiente para respirar fundo e berrar e chorar com mais força. A menininha que iniciou o movimento já estava de olhos inchados de tanto sofrimento e indignação. 

Editora Sal Cultural - Coleção Grandes Temas da Teologia

Quando entra em cena a psicóloga todos os olhos, inclusive os vermelhos dos coelhinhos mais nervosos, cravaram-se nela como lanças numa impaciência expectante. Bocas abertas e …. Lástima das lástimas…. vazias; Cada uma de ovo na mão, dispostas a qualquer coisa para defender o seu ovo, ou melhor seu tesouro que agora tremulavam numa explosão de cores: azuis, vermelhas, verdes, douradas em tons de prata e até branca. Insidiosamente um cheiro forte começa a se espalhar pela sala – que já não era de aula, mas palco de uma verdadeira manifestação coelhal – Algum coelho revoltoso teria soltado uma bomba de chocolate??? Nada de pânico, todas as suspeitas se confirmaram o cheiro exalava das mãozinhas nervosas que seguravam, ou melhor apertavam, firmemente, digo, nervosamente, suas bombinhas que com o calor que faz por essas bandas rapidamente se deram a derreter. Naquele preciso e decisivo instante, na hora H ou melhor naquele “aqui e agora” a psicóloga sentiu seu estômago embrulhando e o pior, não lhe ocorria nenhuma teoria salvadora que resolvesse a Neurose do coelho guloso, pudera, nem a Pavlov poderia ocorrer uma idéia dessas . Perplexa, lançou mão do último recurso disponível para acabar com a confusão, mandou chamar nada mais, nada menos que a diretora-dona da escola em pessoa. A essa altura todos entenderam a gravidade da situação. Mas nem a aura de poder que cerca a diretora, autoridade máxima da escola acalmou os coelhinhos mais exigentes que aos berros, gritavam uns contra os outros, reivindicando um produto de qualidade. A diretora perplexa tentava argumentar com os coelhinhos o sentido da Páscoa, do amor, da renovação de vida… Sem esquecer que as Pessoas, os Relacionamentos são mais importantes que as Coisas, etc, etc, etc… Contudo, nada parecia suficientemente sensato para quebrar a vontade obstinada daqueles coelhinhos gulosos. Indignada a diretora percebeu que retirar os coelhinhos do seu habitat poderia ser uma boa estratégia, mais que rapidamente lançou mão de sua autoridade e de dedo em riste disparou: Passa já!!! Toda a turma… Já prá minha sala!!! 

Ressabiados e chorosos foram todos em fila indiana, ajudados pelo pessoal da disciplina, enquanto gotinhas de chocolate salpicavam, ou melhor açucaravam o chão denunciando a trilha do que foi a Travessia do Coelho Exigente. Depois de tudo resolvido parece que os coelhinhos gulosos protestavam mesmo, é porque não queriam trocar seus chocolates com os colegas, cada um se bastava a si mesmo!!!”

Querido leitor, ainda resta um espaço neste Farol para desejar uma feliz Páscoa. 

Feliz Páscoa, verdadeiramente!


Renê Pereira Melo Vasconcellos é psicóloga, doutora em Ciências Políticas e Sociologia pela Universidad Pontificia de Salamanca, na Espanha.

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