Por Eduardo Vasconcellos Lambert
Mercado bilionário das apostas esportivas ameaça a integridade do esporte e alimenta epidemia de vício digital no Brasil. Jogadores investigados, clubes coniventes e uma sociedade em risco.
Nunca se apostou tanto no Brasil. Literalmente. Com a explosão das casas de apostas esportivas – as chamadas “bets” -, o futebol brasileiro mergulhou de cabeça em um mercado bilionário que, apesar de vestir-se com a roupagem do entretenimento, esconde riscos profundos para o esporte, os atletas e a sociedade como um todo. Hoje, todos os clubes da Série A do Brasileirão são patrocinados por empresas do setor. Narradores, comentaristas e influenciadores recebem regiamente para divulgar odds e palpites. Nas arquibancadas, nas transmissões e até nas entrevistas pós-jogo, as apostas tornaram-se onipresentes.
Mas a que custo?
A presença maciça das bets não é apenas uma questão de publicidade invasiva. Trata-se de uma mudança estrutural no ecossistema esportivo. O que antes era uma paixão movida por identidade, história e comunidade, hoje corre o risco de ser reduzido a uma planilha de estatísticas frias e apostas mecanizadas. Torcedores deixam de torcer para seus clubes e passam a vibrar por escanteios, cartões amarelos ou um simples lateral – tudo para bater uma aposta. O futebol como expressão cultural está sendo lentamente substituído por um jogo de azar.
Quatro riscos sérios a médio e longo prazo:
- Destruição da integridade esportiva: Partidas manipuladas por interesses de apostas colocam em xeque o valor competitivo do futebol.
- Vício e crise de saúde mental: Jovens são cada vez mais atraídos por promessas de lucros fáceis, mergulhando em vício e dívidas.
- Desigualdade econômica no esporte: Clubes menores, sem acesso aos mesmos patrocínios, tornam-se ainda mais frágeis financeiramente.
- Normalização da jogatina: Apostas se tornam socialmente aceitáveis e até incentivadas, inclusive entre menores de idade, criando uma cultura de risco.
Manipulação e Corrupção: A Realidade Que Já Bate à Porta
As promessas de fortuna fácil também abriram as portas para algo ainda mais nefasto: a manipulação de resultados. A “Operação Penalidade Máxima”, deflagrada no Brasil, revelou esquemas organizados em que jogadores recebiam propina para forçar cartões, cometer pênaltis ou entregar partidas. Jovens atletas, muitos deles em início de carreira e sem estrutura psicológica ou educacional adequada, foram aliciados por grupos criminosos que lucravam milhões com as fraudes. As carreiras de alguns já estão destruídas, e a integridade do esporte foi irremediavelmente manchada.
Filipe Luís, atual técnico do Flamengo, cujo patrocínio máster FlaBet é da empresa PixBet, foi uma das raras vozes do futebol a se posicionar contra esse cenário. Em entrevista após o escândalo das manipulações envolvendo o jogador Bruno Henrique, ele declarou: “Eu já recebi várias propostas, mas eu sei o vício que causa em umas pessoas. É uma droga”, afirmou o técnico, projetando que esse cenário não deve continuar no futuro. “Daqui a 20 anos vamos olhar e pensar como todos os clubes tinham patrocínio de casas de apostas.”
O depoimento de Filipe é emblemático: vindo de alguém que vive o futebol por dentro, ele escancara a gravidade da situação e a falta de posicionamento dos grandes clubes e federações. Sua fala reforça a urgência de uma resposta ética por parte das instituições esportivas.
Segundo dados do Instituto Brasileiro Jogo Legal, o mercado de apostas esportivas movimentou mais de R$ 12 bilhões apenas em 2023 no Brasil. Para 2024, estima-se que esse valor ultrapasse os R$ 20 bilhões, com mais de 3.000 sites ativos operando no país, muitos deles sem qualquer sede física em território nacional. Esses números revelam não apenas o tamanho do setor, mas também o desafio de fiscalização e regulação.
Uma Legislação que Já Nasce em Xeque
Em dezembro de 2023, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a chamada Lei das Apostas (Lei 14.790/2023), que regulamentou a exploração comercial das bets no Brasil, legalizando as operações mediante pagamento de tributos e exigência de licenças. O texto foi comemorado por empresas e investidores do setor, mas menos de um ano depois, já enfrenta contestações no Supremo Tribunal Federal (STF).
Entre os principais argumentos jurídicos contra a nova legislação, destacam-se:
- A alegação de que a lei foi aprovada sem debate público adequado, em um tema de grande impacto social;
- O risco de ofensa à Constituição por permitir propagandas agressivas voltadas a públicos vulneráveis, como jovens e pessoas com histórico de dependência;
- A concentração de recursos em empresas estrangeiras, com sede fora do país, dificultando o controle financeiro e a prevenção à lavagem de dinheiro;
- A insuficiência das regras de prevenção ao vício, que deixam a cargo das próprias casas de apostas mecanismos de “autorregulação”.
O STF deverá julgar nos próximos meses a constitucionalidade de pontos-chave da lei, em ações propostas por entidades da sociedade civil, como o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC), que afirma que o texto atual “abre brechas para o aliciamento de usuários e não protege os mais vulneráveis”.
O que dizem os Juristas:
O professor de Direito Constitucional da Universidade de São Paulo (USP), Dr. André Lemos, declarou que a regulamentação das apostas sem uma devida reflexão sobre as conseqüências sociais “abre um precedente perigoso para a banalização de um mercado que pode afetar diretamente a saúde pública e a economia de famílias brasileiras”. Para ele, a permissão de propagandas massivas é uma violação da Constituição, que garante o direito à proteção contra práticas que possam levar ao vício.
A advogada especialista em direito do consumidor, Dra. Mariana Siqueira, alertou: “A falha mais grave dessa legislação é a ausência de controles eficazes sobre os sites de apostas, muitos dos quais operam fora do Brasil e dificultam a ação da justiça brasileira. Há um risco real de lavagem de dinheiro e de consumidores desprotegidos, principalmente no que diz respeito ao público jovem”.
A contestação dessa lei no STF coloca em xeque a velocidade com que um tema tão polêmico foi tratado no Congresso, e a pressão para revisar e até revogar pontos da legislação poderá aumentar nas próximas semanas.
Da Bola ao Tigrinho: O Avanço Silencioso da Jogatina Digital
O problema das apostas esportivas não é um fenômeno isolado. Ele faz parte de um contexto maior: a banalização das jogatinas digitais. O jogo do Tigrinho, promovido massivamente por influenciadores nas redes sociais, é outro exemplo gritante. Vestido com o verniz da diversão, esse tipo de “jogo de slots” é viciado em seu próprio design, feito para gerar dependência psicológica e perdas financeiras catastróficas. Já há relatos de funcionários que perderam salários inteiros em minutos, de pais de família que comprometeram o sustento de casa, e de empresários que decidiram tomar atitude: em algumas empresas, campanhas de conscientização interna foram criadas para alertar sobre os perigos do jogo compulsivo.
Um caso emblemático ocorreu em Alagoas, onde o ex-presidente do CSA, Rafael Tenório alertou sobre a prática entre funcionários da sua empresa, após perceber em sua empresa o aumento no número de pedidos para antecipação das férias, do 13º salário, além dos pedidos de empréstimos. 90% haviam contraído dívidas por conta do jogo do Tigrinho.
A linha que separa uma “brincadeira online” de um vício destrutivo é tão tênue quanto invisível.
Sociedade Defende a Proibição das Bets
De acordo com pesquisa realizada pelo DataFolha em novembro de 2024, 65% dos brasileiros defendem a proibição das apostas esportivas no país, preocupados com o impacto negativo nas famílias, especialmente entre os mais jovens. A pesquisa revela ainda que a 54% da população acredita que as apostas aumentam o risco de vício, endividamento e problemas de saúde mental (26%), especialmente em um contexto onde a regulação do setor ainda é frágil.
Segundo a pesquisa, oito em cada dez (78%) são favoráveis à proibição de jogos de cassinos online, como o do Tigrinho. O índice é majoritário em todas as variáveis sociodemográficas. A opinião pública está cada vez mais consciente dos perigos das bets, e a sociedade exige uma posição mais firme por parte do governo. Para muitos, o setor precisa ser reavaliado e regulado de maneira mais rigorosa, a fim de garantir a proteção dos cidadãos e a integridade do esporte.
Um Caminho Para o Futuro: Legislação, Educação e Coragem Política
Diante desse cenário, é urgente repensar a presença das apostas no esporte e nas redes. Regulamentação severa, fiscalização ativa e campanhas educativas são apenas o início. É preciso coragem política para enfrentar um setor que movimenta bilhões, mas cujos danos sociais não estão sendo devidamente contabilizados. Clubes de futebol, órgãos esportivos e meios de comunicação têm o dever moral de refletir sobre o futuro que estão ajudando a construir.
O futebol brasileiro sempre foi um espelho da alma popular: espontâneo, criativo, emotivo. Reduzí-lo a um tabuleiro de apostas é empobrecer nossa cultura e expor milhões ao risco do vício. O mesmo vale para as jogatinas digitais que, sob o disfarce de modernidade, estão produzindo uma nova geração de endividados e dependentes.
O futuro do esporte e da sociedade está em jogo. E ele não pode ser decidido por um algoritmo de cassino.
Alerta: Procure ajuda Se você ou alguém que você conhece enfrenta problemas com jogos de azar, procure apoio profissional. Jogar pode parecer inofensivo, mas pode custar muito mais do que dinheiro.