Por Eduardo Vasconcellos Lambert
Casos históricos de corrupção sindical mostram que o escândalo previdenciário no Brasil não é um desvio, mas um padrão
Neste 1º de Maio, Dia do Trabalho, o Brasil amanhece sob o peso de um escândalo bilionário que atinge em cheio aqueles que esta data deveria celebrar: os trabalhadores. Um esquema de fraudes previdenciárias envolvendo a inscrição irregular de aposentados em sindicatos e o consequente desconto ilegal de contribuições diretamente em seus benefícios previdenciários expôs mais uma vez a fragilidade — e a perversão — de parte do sistema sindical brasileiro.
No centro do escândalo estão entidades como a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) e o Sindicato Nacional dos Aposentados, Pensionistas e Idosos (Sindnapi), ambas acusadas de beneficiar-se financeiramente da filiação indevida de milhões de segurados do INSS. A Controladoria-Geral da União (CGU) aponta que valores vultosos foram desviados através desse mecanismo silencioso e, muitas vezes, imperceptível para os beneficiários.
Mas, ao contrário do que se poderia imaginar, esse episódio não é uma anomalia. Ele é parte de um padrão histórico — nacional e internacional — de traição à base trabalhadora por lideranças sindicais que se transformaram em burocratas, políticos de carreira ou oportunistas bem posicionados.
Uma história de desvio: quando os líderes se afastam da base
Desde o surgimento dos sindicatos modernos no final do século XIX, seu papel como ferramenta de defesa dos direitos dos trabalhadores sempre conviveu com outro lado — o da instrumentalização por interesses alheios à classe operária. Em muitos países, lideranças sindicais passaram a se aproximar mais de governos, partidos ou elites econômicas do que da base que os sustentava.
Na França, nos anos 1960 e 70, denúncias de alianças espúrias entre dirigentes sindicais e o Partido Comunista mancharam a legitimidade da CGT (Confédération Générale du Travail), afastando parte da classe operária do movimento sindical.
Nos Estados Unidos, os escândalos envolvendo o poderoso sindicato dos caminhoneiros, o Teamsters, ainda são estudados como exemplo clássico de corrupção sindical. Seu histórico inclui conexões com a máfia, fraudes em planos de aposentadoria e o desaparecimento misterioso de Jimmy Hoffa, um dos líderes mais notórios, em 1975 — episódio que inspirou livros e filmes, como O Irlandês (2019).
Na Itália, investigações nos anos 90 revelaram desvio de verbas sindicais para partidos políticos durante o escândalo conhecido como Tangentopoli. Em todos esses casos, o enredo se repetia: sindicalistas que chegaram ao poder com discurso de proteção aos trabalhadores, mas que passaram a agir como burocratas ou políticos de carreira — distantes, opacos e, muitas vezes, corruptos.
Brasil: entre o peleguismo histórico e a captura partidária
No Brasil, a expressão “sindicalismo pelego” surgiu ainda na Era Vargas, com o intuito de descrever a relação de dependência e subserviência dos sindicatos em relação ao Estado. A criação da contribuição sindical obrigatória institucionalizou essa simbiose: os sindicatos recebiam dinheiro automaticamente, independentemente de prestarem qualquer serviço efetivo a seus filiados. Essa realidade criou uma geração de líderes sindicais acomodados, sustentados por repasses compulsórios, muitas vezes mais interessados em agendas partidárias do que nas lutas reais da base.
Curiosamente, foi também Getúlio Vargas quem, em 1943, rebatizou o 1º de maio de “Dia do Trabalhador” para “Dia do Trabalho” — uma mudança simbólica, mas reveladora: deslocava o foco do sujeito (o trabalhador) para o conceito (o trabalho), num esforço de institucionalização e apaziguamento das lutas operárias. Desde então, o Brasil vive um sistema sindical paradoxal: mantido por uma base que pouco escolhe seus representantes e pouco cobra por seus atos.
Durante décadas, os sindicatos brasileiros foram usados como trampolim político. Líderes sindicais que deveriam negociar reajustes ou defender direitos se engajaram em campanhas eleitorais, assumiram cargos em estatais ou viraram parlamentares. A estrutura sindical inchada e burocrática passou a operar como máquina de influência, em vez de defesa de interesses legítimos.
O fim da contribuição obrigatória em 2017 deveria ter forçado uma reforma profunda, baseada em representatividade real. Mas o modelo se reinventou — agora com táticas ainda mais obscuras.
Mesmo após o fim da obrigatoriedade da contribuição sindical em 2017, muitos sindicatos buscaram novas formas de captação compulsória — como a que agora aparece no escândalo do Sindnapi e da Contag.
O escândalo dos aposentados: a consequência previsível
O caso recente envolvendo aposentados inscritos fraudulentamente em sindicatos sem autorização é talvez o exemplo mais perverso da prática histórica de traição sindical. Segundo investigações da Controladoria-Geral da União (CGU), milhões de reais foram desviados por meio de descontos ilegais diretamente da aposentadoria de cidadãos que nunca consentiram com a filiação. O dinheiro era repassado a entidades como o Sindnap e a Contag, que em teoria deveriam representar esses trabalhadores — mas, na prática, lucravam com o silêncio e a desinformação.
O escândalo traz à tona perguntas difíceis: como foi possível que aposentados — muitos com baixa escolaridade ou sem acesso à informação — fossem usados como massa de manobra financeira? Como órgãos sindicais puderam operar por tanto tempo sem fiscalização efetiva? E mais: até quando os trabalhadores serão usados como moeda de troca política e financeira por seus supostos representantes?
O desafio de um sindicalismo ético e renovado
É importante frisar: nem todos os sindicatos são corruptos ou mal-intencionados. Há casos emblemáticos e inspiradores de atuação séria, combativa e transformadora.
É claro que nem todo sindicato se enquadra nesse retrato. Há entidades sérias, lideranças comprometidas e movimentos realmente combativos. Mas é inegável que, em muitos casos, o modelo sindical atual perdeu sua função original — e que episódios como o atual não são exceções, mas sim consequências naturais de um sistema viciado.
Mais do que faixas e discursos, o que os trabalhadores precisam é de transparência, prestação de contas e renovação real nas estruturas sindicais. Porque quando o traidor veste o mesmo uniforme da vítima, o golpe é mais fundo — e o estrago, mais duradouro.
No Brasil, sindicatos como o Sindicato dos Professores do Estado de São Paulo (Apeoesp) e o Sindicato dos Trabalhadores da USP (Sintusp) já lideraram mobilizações históricas em defesa da educação pública e dos direitos dos servidores. Internacionalmente, o National Union of Healthcare Workers (NUHW) nos EUA tem se destacado por transparência e conquista de melhorias reais nas condições de trabalho para profissionais da saúde.
O que distingue essas entidades? Prestação de contas, eleições democráticas, independência de partidos e um vínculo constante com as demandas da base.
Como o trabalhador pode confiar (e se proteger)?
Em tempos de desconfiança, é legítimo que o trabalhador questione: como saber em quem confiar?
A resposta começa pela transparência e participação ativa. Antes de autorizar qualquer desconto sindical, o trabalhador deve:
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Verificar a regularidade e reputação da entidade;
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Exigir documentação formal de filiação voluntária;
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Acompanhar os canais de comunicação oficiais do sindicato;
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Cobrar assembleias, prestação de contas e relatórios periódicos.
Além disso, cresce no Brasil o movimento por novos modelos de representatividade trabalhista, com foco em cooperativas, associações autônomas e plataformas digitais que promovem assistência jurídica, orientação profissional e negociações coletivas de forma descentralizada.
Um sistema em xeque
O escândalo do Sindnapi e da Contag não é um acidente isolado: é uma consequência previsível de um sistema que por décadas premiou a opacidade e o aparelhamento. Quando lideranças deixam de lado o interesse coletivo e se rendem à lógica da autopreservação, o elo com o trabalhador se rompe — e o sindicato deixa de ser ponte para se tornar barreira.
Neste Dia do Trabalho, mais do que celebrar, é hora de refletir. E, acima de tudo, exigir que a representação da classe operária esteja à altura da dignidade de quem trabalha.